Os três primeiros episódios da sexta temporada de Black Mirror, que retorna após quatro anos, deixam uma impressão bem clara: a realidade é mais interessante do que a distopia. Quando Black Mirror estreou, narrativas distópicas não eram bem aceitas. De uns tempos para cá, o streaming é dominado por produções assim – a Apple TV+ que o diga. Faz sentido, então, se afastar de um gênero que a própria série ajudou a estabelecer. Mesmo porque, não é preciso ir muito longe para atestar as crueldades da realidade e controvérsias da sociedade.
“Joan is Awful”
O episódio que abre a 6ª temporada de Black Mirror emula a história do filme O Show de Truman, em um movimento até previsível para os padrões da série. O plot do capítulo reside na privacidade e questiona qual seria a reação se, ao rolar pelos títulos disponíveis no serviço de streaming (aqui chamado Streamberry, mas com o mesmo visual de uma Netflix), encontrássemos um programa que recontasse a nossa vida em tempo real.
Joan (Annie Murphy) passa por essa experiência. Isso serve de gancho para Black Mirror também criticar duramente o uso de tecnologia para produzir histórias mais rápidas, pois o capítulo provoca ao mostrar a série gerada por supercomputadores.
Joan is Awful não é também tão distópico quanto outras incursões de Black Mirror.
Porém, tinha uma história ali mais forte no episódio que poderia ser contada: sobre a atual pressão enfrentada pela geração de líderes que têm entre 35 e 50 anos. Nos primeiros minutos da narrativa, essa era a trama que parecia ter mais potencial.
Pena que ela deu espaço para algo mais óbvio.
“Loch Henry”
O segundo episódio torna mais claro o movimento de Black Mirror, de se afastar mais da ficção distópica enquanto se aproxima da crítica social mais palpável ao público. O tema central de “Loch Henry” é a obsessão pelo gênero true crime, que se popularizou em várias mídias, começando nos podcasts e chegando até os serviços de streaming com várias séries que recriam crimes reais.
Black Mirror até consegue ser bem-sucedido em mostrar como existe um fascínio do ser humano por histórias macabras, pontuando desde aqueles que cometem esses crimes até o público que assiste, aplaude e se reúne para também darem uma de detetive.
O que decepciona no episódio é a forma lenta como as tramas se desenrolam. Há um bom tempo perdido na ambientação para, de maneira agitada, o episódio concluir com um plot twist que poderia ter sido melhor orquestrado.
“Beyond the Sea”
“Beyond the Sea”, ao contrário dos anteriores, é mais sensível, às vezes também poético. E isso permite a série trabalhar mais o lado emocional de uma história cujo fim tende a ser trágico.
A narrativa nesse episódio acompanha dois astronautas, Cliff (Aaron Paul) e David (Josh Hartnett, bom vê-lo de volta às produções), em uma realidade alternativa ambientada em 1969. Enquanto os dois estão em uma missão no espaço que deve durar 6 anos, na Terra seus corpos são réplicas que permitem com que eles “retornem” toda semana na tentativa de levarem uma vida mais comum.
Quando uma tragédia envolvendo David atinge diretamente sua família, Cliff permite que este use a sua réplica para se recuperar. A partir daqui a dinâmica de relacionamento entre eles muda.
Black Mirror explora bem isso, além de também levantar controvérsias sobre as possibilidades de chips baseados nos sentimentos de pessoas reais implantados em robôs movidos por alguma inteligência artificial – ainda que nesse episódio tudo isso esteja em estágio bem primitivo.
Certamente, “Beyond the Sea” foi o episódio em que Black Mirror mais conseguiu atestar seu ponto de vista, de maneira eficiente, sensível e dolorosa.
Texto originalmente publicado na newsletter Sob a Minha Lente (link)