Logo no primeiro episódio de Mr. Scorsese, documentário em cinco partes dirigido por Rebecca Miller, o roteirista e amigo de infância Jay Cocks relembra uma tarefa da qual foi incumbido durante seu tempo como jornalista no New York Times. Ele precisava escrever um perfil sobre um novo cineasta que havia vencido o prêmio de Melhor Filme de estreia em todo o país feito por um estudante, à época aluno da New York University (NYU). E esse jovem diretor era Martin Scorsese.
Essa é só uma, entre tantas outras histórias contadas por familiares, amigos, diretores, atores e produtores de Hollywood neste documentário que, antes tarde do que nunca, revisita toda a carreira de um dos grandes diretores da história do cinema — para mim, o maior deles. Mas, além disso, traça um retrato pessoal e íntimo do ser humano por trás do gênio, ou seja, as consequências enfrentadas por ele — e os impactos em sua família — de alguém que persegue tanto a perfeição e a descoberta de como contar as suas histórias sem abrir mão daquilo que pensa.
O retrato começa desde a infância, quando Scorsese foi diagnosticado com asma e passou boa parte dela dentro de casa, observando o mundo à distância ou pela janela do cortiço onde morava. Já na adolescência, fica mais claro o seu fascínio pela forma de vida de alguns italianos que moravam e mandavam em seu bairro — basicamente a máfia —, mas também a sua atração pela Igreja Católica, que quase o fez virar padre. Até ele perceber, já durante o magistério, que existiam prazeres na vida dos quais não conseguiria abrir mão.
Boa parte dessa história está bem documentada em entrevistas dadas por Scorsese e difundida entre aqueles que acompanham a carreira do diretor ao longo dos anos. O trunfo de Mr. Scorsese é a riqueza de detalhes com que isso é contado, trazendo elementos novos, como a morte repentina de um amigo de infância aos 18 anos, vítima de câncer. Esse evento traumático levou Scorsese a perseguir seu sonho de ser um contador de histórias.
Chegar, porém, a levar o que ele acreditava para a tela se revelou um ciclo de altos e baixos durante toda a sua carreira, entre produções das quais ele era demitido antes mesmo do final por sua personalidade forte e outras em que, por ser tão comprometido com a forma e a experimentação, acabava perdendo a mão e se afundava novamente — tudo isso enquanto via outros cineastas da sua geração, como Coppola, George Lucas, Spielberg e Brian De Palma, terem algum sucesso no que ficou conhecido como a Nova Hollywood. O “se afundar” é quando ele atinge o fundo do poço e quase morre pelo abuso excessivo de drogas.
Miller intercala essas histórias e conflitos pessoais com cenas dos seus principais filmes, em uma montagem que revela o quanto os traumas pessoais de Scorsese moldaram a sua obra, a atmosfera das narrativas e a construção daqueles personagens que às vezes lembravam conhecidos ali do bairro. Nesse momento, Mr. Scorsese trata de fazer uma análise quase que filme a filme, no período que compreende dos anos 70 aos 90. Quando chega aos anos 2000, no entanto, o documentário se apressa e passa rapidamente por grandes filmes desse período, como O Lobo de Wall Street, Ilha do Medo e Silêncio, enquanto outros sequer são mencionados (A Invenção de Hugo Cabret).
Por isso, ao chegar ao final de Mr. Scorsese, por mais definitivo e revelador que seja, fica uma leve impressão de que talvez pudesse ter mais cinco episódios. Há uma sensação de algo incompleto. Isso não descarta o valor que Mr. Scorsese tem, como registro e também entretenimento. A intimidade com que chegamos a conhecer sua obra e seus conflitos o tornam único.

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