Em Nouvelle Vague, o diretor Richard Linklater (Boyhood, Antes do Amanhecer, entre outros) reverencia o movimento francês iniciado por jovens cinéfilos — em sua maioria redatores da Cahiers du Cinéma — que rompeu completamente com as regras e convenções que existiam até então sobre o fazer cinematográfico. E, a cada vez que vemos atores com os nomes de quem eles interpretam surgirem em cena e encararem firmemente a câmera enquanto interpretam figuras como François Truffaut, Alain Resnais, Claude Chabrol, Jacques Demy, Agnès Varda e tantos outros, cresce uma vontade quase irresistível de estar naquela Paris de 1959, na companhia de alguns dos meus maiores heróis do cinema.
E, no fundo, é exatamente isso que Linklater faz. Nouvelle Vague nos coloca dentro daquele ambiente, com um grau de imersão raro. Embora povoado por diversos nomes fundamentais do movimento, o filme se concentra talvez em sua figura mais proeminente — e também a mais anárquica e controversa: Jean-Luc Godard (Guillaume Marbeck). A trama de Nouvelle Vague gira em torno dos bastidores da realização de Acossado, longa de estreia de Godard, obra que não apenas lançou sua carreira como diretor, como também chamou definitivamente a atenção para o movimento que havia começado pouco antes com Os Incompreendidos, de Truffaut.
Essa escolha de foco ajuda a definir o tom do filme. Com características que flertam com o semi-documentário, Nouvelle Vague narra o dia a dia do set de filmagem de maneira ficcional, mas claramente inspirada pela linguagem do próprio Acossado. Isso se revela nas panorâmicas feitas a partir das sacadas dos edifícios, no uso recorrente de espelhos — aqui evocando a célebre cena de abertura de Viver a Vida (1962) — e, sobretudo, na maneira como o roteiro parecia ser escrito poucas horas antes de os atores entrarem em cena, sempre sob o comando do “allez” de Godard.
É nesse contexto que o filme acompanha o processo de escolha do elenco. Jean-Paul Belmondo (Aubry Dullin) é escalado a partir de uma promessa feita por Godard: se um dia dirigisse seu primeiro longa, Belmondo seria sua escolha natural. Já Jean Seberg (Zoey Deutch, ótima no papel) chega ao set ainda marcada pelas experiências traumáticas que viveu sob a direção de Otto Preminger em Saint Joan (1957) e Bonjour Tristesse (1958). Após Acossado, ambos se transformariam em grandes estrelas — ele com centenas de filmes no currículo, enquanto ela teve uma carreira mais irregular e trágica, marcada pela perseguição do FBI por seu apoio aos Panteras Negras, por graves instabilidades mentais ao longo dos anos e por uma morte precoce, aos 40 anos, cercada de circunstâncias até hoje mal explicadas.
Apesar da força desses personagens, é inevitável reconhecer que a grande estrela de Nouvelle Vague — além do próprio movimento — é Jean-Luc Godard. E, ao contrário da imagem frequentemente difundida sobre seu temperamento difícil (algo que, em grande medida, se confirmaria ao longo da carreira), impressiona como Guillaume Marbeck encarna o artista quase como uma figura mística. Sempre escondido atrás de seus óculos escuros, esse Godard se move com charme e dispara reflexões filosóficas sobre a arte de fazer cinema. Ainda antes de Acossado, quebrado financeiramente, ele parecia sentir que precisava filmar seu primeiro longa também por uma espécie de competição silenciosa — aqui uma dedução minha, pois a relação entre todos sempre foi de muito respeito — com seus colegas, que já tinham ao menos um filme no currículo.
Essa tensão ajuda a explicar o caos que se instala no set. Como o próprio Nouvelle Vague mostra — e como já se percebe em Acossado —, a filmagem é um tormento para quase todos, menos para Godard, naturalmente. A equipe se vê perdida diante dos problemas de continuidade, das mudanças de roteiro feitas de última hora e das constantes experimentações propostas pelo diretor. Tudo isso, como seria de se esperar, trouxe dificuldades à produção: havia dias em que Godard filmava apenas duas cenas, em um projeto que deveria durar vinte dias e resultar em um filme de no máximo noventa minutos.
Todos esses desafios são bem colocados e registrados por Nouvelle Vague. Talvez por essa riqueza de detalhes, confesso que o filme não deva provocar o mesmo impacto em um público menos interessado na história do movimento. Trata-se de uma obra muito específica, feita para um certo tipo de audiência — e isso não é um juízo de valor, apenas o reconhecimento de que alguns espectadores se conectam mais com determinados períodos e linguagens do cinema do que outros.
Mas Nouvelle Vague merece um grande elogio porque não tenta soar como um semi-documentário feito nos dias atuais sobre uma produção antiga. O filme de Linklater é um registro que se passa na mesma época, tanto que toda a equipe está completamente alheia de que aquela produção se transformaria no grande sucesso que se tornou, Por isso, acredito que qualquer pessoa deveria dar uma chance a Nouvelle Vague. Trata-se de um filme claramente pessoal para Richard Linklater, mesmo que não seja óbvio identificar de maneira direta a influência de Godard ou de Acossado em suas escolhas como cineasta. Contado de forma leve — seja pelas performances dos atores, seja pela insistência quase obstinada de um artista em fazer florescer suas próprias técnicas —, o filme captura algo essencial da expressão cinematográfica.
É justamente nessa abordagem que Nouvelle Vague encontra sua força maior: nas possibilidades conscientes e inconscientes de filmar uma cena com a câmera escondida dentro de uma caixa, ou de registrar a paixão quase claustrofóbica de dois atores espremidos em um quarto de hotel. É ali, nesse espaço entre o rigor e o improviso, que a arte do cinema — e o prazer profundo que ela nos proporciona — parece estar guardada.
Nouvelle vague (idem, 2025)
Diretor: Richard Linklater
Roteiro: Holy Gent e Vincent Palmo Jr (com adaptação para o idioma francês feita por Michèle Pétin
Laetitia Masson
Elenco: Guillaume Marback, Zoey Deutch e Aubry Dullin.
Duração: 106 minutos
Disponível: Cinemas. Em breve na Netflix

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