Quando o diretor Clint Bentley — que também assina o roteiro ao lado de Greg Kwedar (Sing Sing) — abre o seu filme Sonhos de Trem, o primeiro impacto é o quanto estamos próximos dos personagens e da paisagem que os cerca. Ao escolher filmar em uma razão de aspecto 3:2 (que ajuda a emular a estética de fotografias antigas), Bentley e o diretor de fotografia brasileiro Adolpho Veloso criam um senso de intimidade que torna a audiência parte daquela narrativa. Talvez por isso eu tenha sentido tantas vezes vontade de chorar enquanto assistia. As tragédias e as superações são tão próximas que o desejo é abraçar aqueles personagens.
Baseado na novela escrita por Dennis Johnson em 2001, Sonhos de Trem acompanha Robert Grainier (Joel Edgerton, em uma atuação memorável), um lenhador que passa longas expedições na floresta, participando de grandes construções de ferrovias. Esteticamente, Sonhos de Trem lembra as narrativas de Terrence Malick, mas sem soar tão abstratas, desconexas ou confusas. Ao contrário: o filme tem claramente um caminho para onde quer levar sua audiência.
Nos breves retornos para casa, Robert se apaixona por Gladys (Felicity Jones, também muito bem no papel). Mas não é ele quem chega até ela; a narração de Will Patton deixa isso claro (até porque a personalidade reservada de Robert não permitiria). Eles se apaixonam, fazem planos de construir uma casa com janela para o rio e têm uma filha juntos. Essa vida a três, no entanto, é algo que Robert vive apenas em fragmentos, pois o trabalho o mantém longos meses fora de casa.
Robert chega a questionar isso em dado momento, perguntando a Gladys: “Será que ela sabe que eu sou o pai dela?”. Ao que ela responde: “No fundo ela sabe. Mesmo que ainda não saiba que sabe. Você terá muito tempo para ser o pai dela”. Quando Gladys diz essa última frase, dá para sentir uma leve dor no coração, como se anunciasse que alguma tragédia vai acontecer e mudar completamente a vida de Robert.
Antes disso, porém, durante uma dessas expedições Robert testemunha o assassinato cruel de um imigrante chinês. A partir desse ponto, ele acredita que sua vida está presa a esse momento, no qual sentimentos de culpa e remorso se misturam, como se assombrassem e explicassem todos os acontecimentos do seu futuro — especialmente a perda inesperada da esposa e da filha durante um incêndio que devastou a vila onde moravam.
Se Sonhos de Trem já continha mensagens importantes antes disso, a partir daqui o filme se torna uma história sobre luto. É absolutamente triste ver isso representado na tela, não apenas pela razão de aspecto que nos aproxima da história, mas porque parece que fomos transportados para aquela sequência de Manchester à Beira-Mar, quando vemos o personagem de Casey Affleck beijando cada um dos três filhos só para descobrirmos, quase imediatamente depois, que todos morreram também durante um incêndio.
A dor que vemos Robert passar é a mesma que acompanhamos quando as árvores são derrubadas em favor do progresso. O design de som faz questão de ressaltar os galhos se contorcendo, como se vísceras estivessem sendo arrancadas. Aqui, mais uma vez, a fotografia de Adolpho Veloso também é essencial, seja no contra-plongé quando evidencia a imponência das árvores derrubadas por humanos que parecem bonequinhos naquele espaço; ou no uso de tilts, com a câmera literalmente presa nas árvores, filmando a queda com um realismo brutal.
A natureza, claro, dá o troco: braços que se desprendem e caem na cabeça de um homem; uma árvore inteira cortada que, antes de cair, leva outros três trabalhadores com ela. Sonhos de Trem cria esse paralelo inusitado entre o que se passa na floresta e o impacto disso na vida de Robert, ainda mais após a tragédia sofrida por ele.
Depois do grande incêndio que devastou a vila, o governo cria um cargo remunerado para alguém observar e reportar potenciais focos de incêndio. Robert, já aposentado do trabalho como lenhador, um homem sozinho e vivendo por conta própria, é quem busca essa pessoa, Claire (Kerry Condon). Eles protagonizam uma passagem importante, quando ela conta que na floresta cada coisa tem sua importância, que tudo está interligado e não dá para dizer onde uma coisa termina e outra começa.
Enquanto o mundo vai de trens a aviões, coisas que a humanidade cria — invenções, inovações – e quando desbravar a terra não é mais suficiente (o foco se volta para o espaço), encontrar e manter o equilíbrio entre nós e o planeta é o grande desafio. Ainda que isso no filme esteja em segundo plano, é preciso aplaudir como essa aflição e angústia de Bentley e Kwedar se misturam com os sentimentos de Robert.
Sonhos de Trem é um desses filmes honestos que estão cada vez mais raros. Mas também fala sobre o que se coloca em perspectiva: Robert constrói uma ferrovia, que depois é tornada obsoleta por outra mais alta; Claire, do alto da sua torre de observação, analisa a terra devastada pelo incêndio; e, por último, Robert, já no fim da década de 60, testemunha a mais nova inovação que levará a humanidade rumo à modernidade: o avião. E, ao ver o mundo de cima para baixo, surge um novo significado sobre até onde ele chegou.
Sonhos de Trem (Train Dreams, 2025)
Diretor: Clint Bentley
Roteiro: Clint Bentley e Greg Kwedar, baseado na novela de Denis Johnson.
Elenco: Joel Edgerton, Felicity Jones, William H. Macy, Kerry Condon e Clifton Collins Jr.
Duração: 102 minutos
Disponível: Netflix

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