Nunca me pareceu que um filme sobre Barbie pudesse dar certo. Ainda bem que eu estava completamente enganado. Barbie não só é um ótimo filme, como também aborda conflitos existenciais e discussões filosóficas sociais com leveza para assegurar que esses conceitos sejam transmitidos com clareza à sua audiência e disseminado por ela.
Isso graças ao talento e inventividade da diretora Greta Gerwig, que escreveu o roteiro de Barbie com seu parceiro Noah Baumbach (Histórias de Casamento).
Em Barbie, Greta reafirma sua capacidade de contar boas histórias ao misturar fantasia e realidade, além de jogar muito bem com suas contradições, do mundo perfeito da Barbieland em contraponto a realidade da sociedade patriarcal, e controvérsias que a Mattel se envolveu nos últimos anos.
[CUIDADO: SPOILERS A PARTIR DAQUI]
A metáfora é eficiente: o que se passa na Barbieland, ao acompanharmos a Barbie Estereotipada (Margot Robbie), nada mais é do que o imaginário de uma menina que usa da criatividade para desenvolver um mundo diferente e só dela, no qual as suas bonecas brincam e são o que quiserem. Isso quando não tem nenhum Ken (Ryan Gosling) querendo chamar mais atenção.
Quando o que acontece nesse imaginário começa a questionar e refletir o seu lugar no mundo, o qual remete à abertura do filme na referência a 2001: Uma Odisséia no Espaço com bonecas sendo quebradas pelas novas gerações, Barbie passa a não acreditar nesse mundo ideal, perfeito e cor-de-rosa.
Inteligentemente, Greta conecta esses sentimentos com a ideia de que Barbie precisa ir até o mundo real, encontrar a menina que está tendo esses pensamentos e restabelecer o equilíbrio entre os dois mundos. E Ken a acompanha nessa jornada.
Logo, os impactos dessa realidade exercem uma forte pressão, tanto em Barbie quanto em Ken. Enquanto ela está em busca de resposta e significado, Ken se depara com um mundo dominado por homens e isso o deslumbra.
Em paralelo, a fábula trilha de Barbie é ainda mais provocativa, pois ela vê quem está provocando essas memórias e se surpreende: não é uma criança, mas sim Gloria (America Ferrara), mulher nos seus trinta e poucos anos e que está em busca de estabelecer algum tipo de conexão com a sua filha.
Dessa forma, a relação entre mãe-filha ganha um novo capítulo na filmografia de Greta, a qual já havia analisado esse tema no ótimo Lady Bird – seu primeiro longa-metragem.
Tudo isso enriquece a fantasia criada pela diretora e as referências que ela joga na tela: seja na abertura que remete a 2001: Uma Odisséia no Espaço, nas sequências ambientadas na sede da Mattel que emulam Dr. Fantástico, também de Stanley Kubrick, e até quando subverte o próprio gênero ao incluir números musicais que recordam a era de ouro de Hollywood – dominada por homens brancos cujas produções nunca exibiam os conflitos sob o ponto de vista das mulheres.
A partir dessas referências tão bem utilizadas, Greta Gerwig destila cutucadas (Zack Snyder que o diga), piadinhas (cinéfilo explicando O Poderoso Chefão) e desconstruções dos padrões de beleza. Por isso uma das cenas mais emblemáticas no filme é quando o presidente da Mattel pede a Barbie para ela entrar na caixa. E a “boneca” reluta.
Tanto o filme quanto a personagem não querem rótulos, ou serem perfeitamente embalados em uma caixinha e colocados em prateleiras que as categorizem. Barbie é um filme que tem muito a dizer, bem elaborado e genuinamente divertido. Do início ao fim.
Texto originalmente publicado na newsletter Sob a Minha Lente (link)