Agnès Varda, cineasta francesa e uma das mais importantes vozes da sua geração e do movimento da Nouvelle Vague (formado majoritariamente por homens), abre seu terceiro longa-metragem (o primeiro colorido), As Duas Faces da Felicidade (Le Bonheur, 1965), com uma visão clara do que a sociedade enxerga como uma família perfeita e feliz.
Os elementos que compõem esse primeiro quadro são essenciais para entender a narrativa do filme: como As Duas Faces da Felicidade sai de uma sequência pulsante e feliz da família de mãos dadas vagando idilicamente pelo bosque, com cortes bruscos e pontuada por uma peça musical de Mozart (Clarinet Quintet K581 in A Major), para o mesmo quadro (com diferenças sutis), agora no final da história, com o mesmo Mozart (Adagio and Fugue K546 in C Minor), mas melancólico e pensativo?
Esse é o grande cerne da questão do filme de Agnès Varda, talvez a sua mais debatida obra e considerada uma das mais controversas também. A trama acompanha François (Jean-Claude Drouot), marceneiro e casado com Thérèse (Claire Drouot), uma estilista e costureira — os atores também são casados na vida real e eram as grandes estrelas da televisão francesa na época. A família é completada por duas crianças, também interpretadas pelos filhos do casal Druout.
As Duas Faces da Felicidade acompanha a rotina dessa família perfeita, como a sociedade gosta de apontar. Até chegar ao seu ponto de desequilíbrio, quando François viaja até uma cidade próxima do subúrbio parisiense onde vivem e conhece Émilie (Marie-France Boyer), uma trabalhadora dos correios local.
Os dois trocam olhares, começam a flertar e marcam encontros. Não demora muito para François se declarar para a amante, substituindo tão facilmente toda a estrutura familiar que construiu pelo seu egoísmo e desejo.
Nesse momento o filme de Agnès Varda começa a ser mais debatido pelas escolhas que a diretora faz. Será que As Duas Faces da Felicidade é sua tentativa de criticar a ideia da família perfeita? Será que a sua ideia de felicidade, estampada no título, é uma ironia e parte dessa crítica social? As Duas Faces da Felicidade é, no final, um melodrama colorido ou um thriller trágico e psicológico?
É muito difícil responder essas perguntas porque, para isso, seria necessário invadir de alguma forma os pensamentos de Agnès Varda.
As Duas Faces da Felicidade é, de fato, um filme colorido, vibrante e quase uma continuação à Os Guarda-Chuvas do Amor (Les Parapluies de Cherbourg, 1964), dirigido por Jacques Demy (esposo de Agnès Varda até a morte dele, em 1990). Somados e comparados, ambos vão na contramão do monocromático preto e branco pregado pela Nouvelle Vague.
Entretanto, Agnès Varda, com o apoio dos diretores de fotografia (Claude Beausoleil e Jean Rabier), faz algumas escolhas com a utilização das cores para criticar a ideia do patriarcado (visto recentemente de forma menos sutil em Barbie). Em meio à tela colorida, os personagens masculinos estão sempre na sombra ou no ponto de menos luz em relação às personagens femininas.
Isso está bem representado nas sequências nos bosques, no momento em que François está no banheiro se barbeando e Thérèse no quarto realizando alguma atividade, ou na sequência de casamento de uma cliente de Thérèse na qual o fotógrafo pede para tirar uma foto e os homens estão encobertos pela sombra de uma árvore, enquanto as mulheres brilham no sol.
É possível enxergar isso como Agnès Varda dando destaque e importância às mulheres, mas o significado mais proeminente é como elas se dedicam inteiramente à família, aos afazeres da casa e aos filhos, enquanto os homens discutem preferências entre Brigitte Bardot e Jeanne Moreau, e até mantém casos extraconjugais
As Duas Faces da Felicidade critica justamente aquela parcela da sociedade que mais enche a boca para falar da “família perfeita” e dos símbolos que isso representa, mas também são os primeiros a traírem e normalizarem o erro. Agnès Varda não contemporiza a traição, apesar de mostrar os personagens discutindo abertamente até a possibilidade de um relacionamento aberto.
Tudo isso, porém, colocado na perspectiva do egoísmo do homem. Assim, é mais trágico do que surpreendente a forma como Agnès Varda conduz o terceiro ato do filme que culmina no mesmo quadro da abertura, com a família andando por um bosque (agora no outono), com figurino e luz similares. Agora, no entanto, de costas para a audiência.
O que vemos não deixa de ser a ideia de uma família perfeita ou de felicidade. Mas ao colocá-la de costas, Agnès Varda sente vergonha dela pelo golpe dolorido que François desferiu sobre a própria família. E com essa sutileza a diretora nos faz sentir o mesmo desconforto que a provocou tomar essa decisão.
Próximo Filme: A Conversação, de Francis Ford Coppola.
Texto originalmente publicado na newsletter Sob a Minha Lente (link)