No filme A Origem, Cobb volta à realidade ou está sonhando? Capitu traiu Bentinho em Dom Casmurro? Teddy é paciente ou detetive em Ilha do Medo?
São perguntas vindas de histórias ambíguas que sempre atraem a nossa atenção pela natureza por si só da ambiguidade. Anatomia de uma Queda segue esta dinâmica, com algumas camadas que tornam a trama misteriosa até o fim.
Vencedor da Palma de Ouro em Cannes nesse ano e dirigido por Justine Triet (que também assina o roteiro com Arthur Harari), Anatomia de uma Queda apresenta nos primeiros trinta minutos a morte misteriosa de Samuel (Samuel Theis), professor e aspirante a escritor. A principal suspeita é a sua esposa, Sandra (Sandra Huller, em atuação tão marcante quanto no ótimo Toni Erdmann), uma romancista já com um nome consagrado no mercado editorial.
O filme provoca a questão: será que Sandra é a responsável pela morte do marido? A partir daí, o filme nos leva por uma estrada escura a qual pouco enxergamos o que está à frente e seguimos apenas nosso instinto em meio às curvas para chegar em segurança ao nosso destino.
É uma metáfora, mas também é uma cena que aparece no filme e que funciona muito bem para explicar o quanto Trie deliberadamente nos coloca no escuro – assim como a sua protagonista.
Anatomia de uma Queda, porém, não fica apenas no mistério sobre a culpa ou não de Sandra. Enquanto a primeira metade do filme é sobre ela convencendo o seu advogado (e nós mesmos), Vincent Renzi (Swann Arlaud), de que é inocente enquanta narra os últimos momentos que antecederam a morte do marido, o filme é mais ainda sobre o relacionamento conjugal.
Durante um testemunho, Sandra diz que “um casal é uma espécie de caos, às vezes lutamos juntos e outras separados”. E é isso que assistimos a partir do momento que Anatomia de uma Queda muda o foco da narrativa e se torna um drama penal – e bem construído como há muito tempo eu não via – ao acompanhar o julgamento de Sandra e detalhar a investigação.
Isso nos lembra que esse não é um filme de uma história típica de um livro de Agatha Christie, no qual algum detetive aparece em cena para solucionar o crime.
Há indícios da culpa de Sandra? Sim, principalmente na forma como Triet por vezes esconde a personagem envolto em uma luz escura que às vezes a torna alguém ameaçadora; mas há também indícios da sua inocência e que se trata, ao final, de um suicídio.
É claro que essa ambiguidade é o que Justine Triet deseja plantar na nossa cabeça. Tendo certeza ou não, Sandra não parece satisfeita (ou segura) mesmo após o veredicto. É como se ela não encontrasse a paz e alívio que ela buscasse logo quando o julgamento termina.
Baseando-se apenas em suposições, Anatomia de uma Queda impressiona por ter a narrativa sustentada em um debate que termina por expor a intimidade, fragilidade e conflitos de um casal (formado por pessoas conhecidas do público) aos escrutínios da mídia e sua cobertura sensacionalista (até lembrou o julgamento do caso Johnny Depp v Amber Heard).
Em meio a isso tudo, Triet se diverte e brinca com o mistério. A sua câmera, no entanto, não tenta nos manipular. Mesmo porque, a trama central não é sobre resolver o crime.
O ponto central de Anatomia de uma Queda está nas consequências trágicas e traumáticas por tudo que envolve os conflitos de um relacionamento, entre elas a falta de diálogo.
Texto originalmente publicado na newsletter Sob a Minha Lente (link)